Compartilhe!

Francisco: o surpreendente papa latino-americano

Leia mais

Compartilhe!

A escolha de um novo papa é um acontecimento histórico, que marca a vida do 1,3 bilhão de católicos e toma de curiosidade o resto da população mundial. Como o papado é uma função para a vida toda, sem mandato definido, um novo papa costuma ser precedido da notícia de que o pontífice anterior está doente. Após a doença, vem sua morte, seu funeral, e então o mundo se prepara para um novo chefe da Igreja Católica. Nada disso aconteceu em 2013.

Contra a tradição e a expectativa de todos, o papa Bento 16 não esperou pela natureza – ou a decisão de Deus. Preferiu ele mesmo escolher o momento de sua partida e renunciou ao cargo. Contra a expectativa de muitos, ele foi sucedido por alguém que se mostrou seu oposto. Papa Francisco, o primeiro com o nome de Francisco entre os 266 pontífices dos quase 2 mil anos do trono de São Pedro, foi também o primeiro originário da América Latina.

A surpreendente renúncia

Tudo parecia relativamente bem na cúpula do Vaticano no início de 2013. Apesar de seus 85 anos de idade, o papa Bento 16 seguia firme em seus compromissos. Em janeiro, recebeu a visita do príncipe Albert de Mônaco e sua mulher, princesa Charlene, posando sorridente para fotos. No mesmo mês de janeiro, Bento 16 mostrava-se cada vez mais à vontade com a tecnologia moderna, enviando seu primeiro tuíte em latim – em 2011 ele disparou seu primeiro tuíte.

No mês seguinte, entretanto, veio uma notícia que o mundo católico não recebia desde 1415: o papa decidira renunciar. Em 11 de fevereiro, Bento 16 anunciou que abandonaria o posto de chefe da Igreja no final daquele mês – medida inédita desde que Gregório 12 deixou o trono de São Pedro seis séculos antes. As razões alegadas pelo pontífice alemão foram, basicamente, sua saúde frágil. Não que ele estivesse doente ou tivesse poucos anos de vida – no final de 2020, ele continuava vivo e ativo. Em 2013, sua energia não parecia ser um empecilho para suas missas, sermões ou encontros com convidados ilustres. Talvez não mais fosse, porém, suficiente para o grau de intrigas e disputas internas que parecia existir na cúpula do Vaticano.

Em maio de 2012, as autoridades do pequeno Estado prenderam o mordomo de Bento 16, Paolo Gabriele, acusado de vazar documentos num escândalo que ficou conhecido como Vatileaks. Gabriele, que ficou preso por três meses, buscava denunciar supostos casos de corrupção dento da Cúria, e o episódio foi um exemplo do tipo de problema que cercava o pontífice. O conservador Bento 16 assumira o comando da Igreja em 2005, após a morte de João Paulo Segundo, num período de grande divisão no Vaticano, abalado pelos sucessivos escândalos de abusos sexuais por padres e bispos católicos ao redor do mundo. Oito anos depois, Joseph Ratzinger parecia não se considerar mais a pessoa a gerenciar tais desafios internos. Acreditava ter cumprido sua missão.

A surpreendente escolha

Após a chocante notícia da renúncia papal ter sido digerida pela comunidade católica, a cúpula da Igreja começou a debater o nome de seu substituto, em meio a muita especulação. Em primeiro lugar, o Vaticano se via na inusitada situação de escolher um novo pontífice quando o anterior ainda estava entre eles. Muitos questionavam se Bento 16 – nome mantido por Ratzinger após a renúncia, com o título de “papa emérito” – teria alguma influência no trabalho do novo pontífice. Entrevistado pela BBC logo depois da renúncia, o irmão do papa fez questão de afastar essa possibilidade. “Naquilo que precisarem dele, ele estará disponível, mas ele não vai querer interferir nos assuntos do seu sucessor.”

Bento 16 escolheu como e quando deixar o comando da Igreja e despediu-se dos fieis em Castel Gandolfo

No dia 28 de fevereiro, Bento 16 despediu-se e abandonou o posto. Num encontro com os cardeais, dirigiu-se ao grupo prometendo obedecer ao novo chefe da Igreja. “Entre vocês, no Colégio dos Cardeais, está o futuro papa, a quem eu já prometo hoje a minha incondicional reverência e obediência.” Mais tarde, ele apareceu a um grupo de fiéis, na sacada do Palácio Papal de Castel Gandolfo, cidade a 25 quilômetros ao sul de Roma. Às 20h daquele dia, seu papado chegou ao fim.

No dia 12, o conclave de 115 cardeais reuniu-se em Roma para escolher o novo papa. Nas semanas anteriores foi grande a especulação sobre o nome do substituto de Bento 16. Entre os mencionados em reportagem a BBC News, estavam nomes como os italianos Angelo Scola e Gianfranco Ravasi, o canadense Marc Ouellet, o ganês Peter Turkson e o filipino Luis Tagle. Três latino-americanos apareciam entre os destaques da BBC: os brasileiros Odilio Pedro Scherer, de São Paulo, e João Braz de Aviz, de Santa Catarina, e o argentino Leonardo Sandri. Ausente dessa e de tantas outras listas publicadas na imprensa internacional, estava o nome do jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio – apesar de, segundo relatos, Bergoglio ter gado em segundo lugar na votação do conclave de 2005, que escolheu Ratzinger.

O sorridente papa Francisco faz seu primeiro proununciamento a fiéis na Praça São Pedro

A primeira votação, no dia 12, não gerou um vencedor – algum candidato precisaria ter ao menos dois terços dos votos -, e a fumaça preta foi vista pela primeira vez saindo da chaminé da Capela Sistina. No dia seguinte, uma quarta-feira, outras três votações, duas de manhã e uma à tarde, resultaram em novos impasses – e novas emissões de fumaça preta. Já havia, entretanto, um movimento dos cardeais em torno da candidatura de Bergoglio. Em meio às disputas que aparentemente opunham a força dos italianos e uma desconfiança em relação aos aspirantes locais, o argentino de ascendência italiana firmou-se como um nome aceito por praticamente todos.

Na quinta votação, a fumaça expelida era branca. Da sacada diante da Praça São Pedro, o porta-voz fez o esperado anúncio em latim “Habemus Papam” (Temos um papa). Em seguida, revelou o nome de Bergoglio e informou ao mundo como ele seria conhecido a partir de então: Francisco. Como explicou posteriormente o Vaticano, o nome foi escolhido pelo argentino como homenagem a São Francisco de Assis, um santo associado ao compromisso com os mais pobres. Tão emblemática é a figura de São Francisco de Assis que seu nome nunca havia sido adotado por um pontífice antes. A decisão do novo chefe da Igreja era a primeira indicação do início de uma nova era em Roma.

Pouco depois do anúncio, no início da noite, o argentino apareceu na sacada, pela primeira vez como pontífice, diante de uma lotada e eufórica Praça São Pedro. Sorria timidamente. Vestia branco, sem o manto vermelho usado por outros papas nessa ocasião, e carregava no peito o mesmo crucifixo de ferro que usava como cardeal, em vez do tradicional crucifixo dourado do chefe da Igreja – gestos que buscavam transmitir uma imagem de simplicidade. “Rezem por mim”, pediu o novo papa, de 76 anos, à multidão, em mais um gesto de humildade. Na Argentina, fiéis comemoravam. “Isso é uma bênção para a Argentina”, gritava uma mulher numa rua de Buenos Aires, citada pela agência de notícias Reuters.

No Brasil, para o então secretário-geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dom Leonardo Steiner, a escolha de Bergoglio foi “uma agradável surpresa”. “Não se esperava que realmente fosse um latino-americano.” A expectativa dos bispos brasileiros, segundo ele, era muito positiva. “Ele pode levar ao ministério petrino uma experiência bonita, de uma Igreja que está preocupada em ser atuante, uma Igreja dos direitos humanos.”

Um papa humano

Bergoglio foi o primeiro jesuíta e o primeiro latino-americano a ocupar o trono de São Pedro. Sua origem também fez dele o primeiro não-europeu desde o sírio Gregório Terceiro, no século 8. Se sua escolha surpreendeu os produtores de listas de favoritos, suas declarações, atitudes e condução da Igreja causaram espanto semelhante entre aqueles que apostavam numa repetição do conservadorismo de Bento 16. Muito diferente do antecessor, Francisco logo mostrou-se um papa moderno, próximo de causas sociais e sem medo de tocar em temas polêmicos para a tradição e os costumes católicos.

Sua primeira viagem como papa, ainda dentro da Itália, teve uma forte mensagem humana. No começo de julho de 2013, Francisco visitou a ilha de Lampedusa, que na época estava lidando com uma crescente chegada de migrantes vindos de partes do mundo atingida por conflitos armados ou pobreza extrema – ou ambos.

“Nós perdemos um sentido de responsabilidade fraterna”, disse o pontífice na ilha, ao criticar o que chamou de “indiferença” do mundo com migrantes e refugiados. Sua preocupação mostrou-se ainda mais válida quando, três meses depois, um barco transportando mais de 500 pessoas, que partira da cidade de Misrata, na Líbia, naufragou a centenas de metros de Lampedusa. A maioria dos ocupantes da embarcação era da Eritreia e da Somália. O naufrágio deixou 368 mortos.

Ainda em julho, Francisco fez sua primeira viagem internacional, para o Brasil. Participou, no Rio de Janeiro, da Jornada Mundial da Juventude, evento da Igreja Católica para jovens do mundo todo, realizado pela primeira vez no país. Foi a terceira visita de um pontífice ao Brasil, que já havia recebido João Paulo Segundo e Bento 16. Além de participar da jornada, Francisco rezou uma missa no santuário de Nossa Senhora Aparecida, no interior de São Paulo.

Na viagem de volta para Roma, Francisco falou com jornalistas por mais de uma hora, durante o voo. Durante a entrevista coletiva, tocou num assunto delicado e polêmico que abordaria com relativa frequência nos anos seguintes: a relação da Igreja com os homossexuais. No mês anterior, o papa havia mencionado, numa reunião interna, a existência de corrupção e de um certo “lobby gay” operando na burocracia do Vaticano. Posteriormente, disse ser contra qualquer tipo de lobby, não apenas de gays. Durante o voo, porém, sua fala sinalizou uma abertura inédita ao tratar do tema. Disse que homossexuais deveriam ser integrados à sociedade, não deixados no ostracismo. “Se alguém é gay e busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?”

Com o passar os anos, Francisco seguiu mostrando uma face mais compreensiva em relação à comunidade homossexual. Em junho de 2016, em nova entrevista coletiva dentro de seu avião – desta vez retornando da Armênia -, ele disse que homossexuais não deveriam ser discriminados, mas sim “respeitados e acompanhados pastoralmente”. Mais: segundo ele, a Igreja deveria pedir desculpas àqueles que havia marginalizado. “Eu acho que a Igreja não apenas deveria pedir desculpas a uma pessoa gay que ela ofendeu, mas deve também pedir desculpas aos pobres, às mulheres que foram exploradas, às crianças que foram exploradas pelo trabalho. Deve pedir desculpas por ter abençoado tantos armamentos.”

Francisco não se tornou um ícone gay nem deixou de mostrar preocupação com o tema, especialmente quando envolvia o interior da Igreja. Em dezembro de 2018, o papa chamou a homossexualidade de “modismo” e de “uma questão muito séria” e conclamou os representantes da Igreja a respeitarem o celibato. Afirmou que a melhor maneira de lidar com a existência de padres gays era não permitir que homossexuais entrassem na Igreja. Em relação à homossexualidade na sociedade como um todo, porém, o discurso de Francisco tornou-se cada vez mais acolhedor.

Sua postura culminou com sua histórica declaração, em outubro de 2020, sobre a união de homossexuais e a constituição de uma família com pessoas do mesmo sexo. Apesar de anos antes ter dito que “o casamento é entre um homem e uma mulher”, ele associou homossexuais aos conceitos de “família” e “união”. “Pessoas homossexuais têm o direito de estar numa família”, disse o papa, como parte de um documentário. “Eles são filhos de Deus e têm direito a uma família.” O caminho, segundo ele, seria a união civil. “O que temos de criar é uma legislação para união civil. Dessa forma eles estão legalmente cobertos.”

Abuso infantil

Francisco assumiu o comando da Igreja em meio a uma crise que já afetara seus dois antecessores imediatos: as sucessivas acusações e suspeitas de abuso sexual por padres e bispos católicos contra crianças. Se nos tempos de João Paulo Segundo a Igreja foi acusada de abafar denúncias, e críticos de Bento 16 dizem que ele não dedicou atenção suficiente ao problema, Francisco decidiu adotar diferente postura. Logo de início, ele mostrou estar ciente de que a credibilidade e respeito da Igreja Católica junto a seus fiéis e a comunidade internacional estavam em jogo.

Com menos de um ano de papado, em dezembro de 2013, Francisco anunciou a abertura de um comitê para combater o abuso sexual envolvendo integrantes da Igreja. A ideia era atacar o problema sob o aspecto pastoral, produzindo orientações e códigos de conduta para evitar futuras ocorrências – em vez de apenas lidar com elas no campo disciplinar e jurídico. A partir de então, o papa buscou um equilíbrio difícil ao tentar defender as ações da Igreja sob seus predecessores e reconquistar a confiança de vítimas e da comunidade católica. Em março de 2014, um mês depois que um relatório das Nações Unidas criticou a cúpula católica na crise sobre abusos sexuais, Francisco defendeu o balanço das ações de sua instituição. “Ninguém fez mais [do que a Igreja]. Ainda assim, a Igreja é a única a ter sido atacada.”

Já tendo expressado sua opinião com a carta sobre abusos sexuais, Bento 16 surgiu, no início de 2020, como co-autor de um livro. A obra do cardeal ganês Robert Sarah, Do Profundo de Nosso Coração, apresenta uma defesa vigorosa da norma do celibato. O livro foi inicialmente avaliado por críticos como uma reação aos movimentos de Francisco de tentar relaxar as regras nesse quesito. Diante da repercussão inicial, no entanto, a assessoria de Bento 16 negou que ele fosse co-autor da obra, informando apenas que ele havia colaborado com um texto. O livro foi então alterado, mostrando apenas Sarah como autor, “com a colaboração de Bento 16 – Joseph Ratzinger”. O capítulo escrito pelo ex-papa, no entanto, não deixa dúvidas do que ele pensa. Escreveu ele: “A condição de casado envolve um homem em sua totalidade, e como servir ao Senhor também exige total dedicação de um homem, não parece ser possível abraçar as duas vocações simultaneamente”.

Francisco tirou a Igreja Católica do campo conservador em que se encontrava com Bento 16 e a colocou num rumo modernizante e próximo de causas humanas e sociais. Tal caminho foi bem recebido por grande parte da comunidade católica mundo afora, mas tanto no Vaticano como fora dele há muitos que discordam. Tais disputas provavelmente continuariam por muito tempo, inclusive após terminada a era de Francisco no trono de São Pedro. O papa argentino, porém, deixou uma marca que dificilmente será apagada. Após sua passagem pelo comando da Santa Sé, talvez a Igreja nunca mais seja a mesma.

Este artigo é parte da série 21 Histórias que Marcaram o Século 21, da BBC News Brasil.


Compartilhe!
- Advertisement -spot_img
- Advertisement -spot_img

Últimas notícias

Em poucas horas, policia militar da 38ª CIPM apreende duas motocicletas com restrição de roubo

Por volta das 21h:00, policiais militares da 38ªCIPM em patrulhamento ostensivo, mediante comportamento nervoso e menção em fugir da...

Compartilhe!