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Vaclav Smil: “Em cinco anos haverá escassez de água e alimentos”

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Cientista pesquisa sobre energia há mais de 40 anos. Acredita que há no mundo mais progresso que retrocesso, “embora o retrocesso sempre esteja à espreita”

O cientista Vaclav Smil , fotografado no parque St. Vital em Winnipeg (Canadá) TIM SMITH (CONTACTO)

Inquieto, atento e meticuloso, Vaclav Smil (Pilsen, Tchéquia, 1943) é a imagem viva de um sábio. Há 40 anos vem investigando o retorno energético. Seu saber poliédrico baseia-se em fatos e está reunido em livros como Energy in world history (“História da Energia no Mundo”) e Numbers don’t lie (“Os Números Não Mentem”, com o subtítulo “71 coisas que você precisa saber sobre o mundo”). Está tão acostumado à precisão dos dados que qualquer pergunta lhe parece generalista. Fala da sua casa, em Winnipeg (Canadá), onde chegou há quase meio século e vive com sua esposa, sem celular. Aposentado como professor de meio ambiente na Universidade de Manitoba, afirma que há no mundo mais progresso que retrocesso, “embora o retrocesso sempre esteja à espreita”.

Pergunta. Os economistas defendem o crescimento. Estão errados?

Resposta. Não. E sim. Muitos países precisam crescer. A questão é quais. Nos Estados Unidos, não precisam de mais advogados. Na Europa, sobram burocratas em Bruxelas. Mas o planeta tem um problema de suprimentos. Em cinco anos haverá escassez de água e alimentos. Devemos crescer na direção correta.

P. E não estamos fazendo isso.

R. Não precisamos que cresça o mercado de veranistas nas Seicheles. Precisamos que a Malásia e a Indonésia cresçam, mas não os Estados Unidos. E é fundamental aproveitar o crescimento para melhorar a equidade. Que o produto interno bruto aumente de maneira desigual não é bom, embora devamos assumir que uma sociedade perfeitamente igualitária jamais existirá.

P. A equação crescimento/felicidade nem sempre funciona.

R. Há duas formas de medir as coisas, inclusive as emoções. Objetivamente, indicadores como a taxa de suicídios, divórcios ou crimes violentos revelam infelicidade, porque, se você estiver bem, não se suicida, nem se divorcia, nem é violento. Mas também há indicadores subjetivos. Aí entram os indivíduos: as pessoas podem ser pobres e felizes. A maioria tem problemas e não se define como infeliz. Veja, ninguém é muito feliz no Afeganistão. Mas o índice de felicidade que resulta de comparar ambos os indicadores aponta que o crescimento não torna mais feliz. As pessoas na Bolívia são mais felizes que os japoneses ou os espanhóis. A felicidade e a renda per capitanão estão relacionadas.

P. As maiores economias do mundo exportam armas.

R. Sim. Estados Unidos, China, Espanha… inclusive o Canadá. É um mercado global. De onde você acha que o Talibã tirou as armas durante os últimos 20 anos? Não as produziram numa caverna, né?

P. Desarmar o mundo é uma utopia?

R. Por mais que fossem proibidas, o que não acontecerá, você acha que os proprietários as devolveriam?

P. O mundo vai depender das relações a serem estabelecidas com os países islâmicos?

R. Durante séculos houve fundamentalismo no catolicismo. Agora se dá no islamismo. Mas há muito islamismo moderado. E muito desconhecimento sobre o islamismo. Vejamos: qual é país do mundo com maior população muçulmana?

P. Não sei. O Irã?

R. Na Índia, os hindus são a população mais ampla. Mas os muçulmanos são a segunda. Por isso é um país islâmico maior que o Paquistão ou a Arábia Saudita.

P. O crescimento econômico está por trás da obesidade? Do câncer…?

R. Não há crescimento sem risco. E essas doenças são multifatoriais. Cada avanço acarreta um risco que precisa ser pesado. É absurdo tratar de medir o mundo em termos opostos. O bem e o mal são relativos.

P. Tudo é relativo, mas o senhor resume sua informação em números.

R. Sem dados não é possível tomar decisões. Mas, inclusive se você tiver os melhores números, deve considerar o imprevisível, o aspecto não numérico de cada decisão. É fácil reduzir emissões do CO2 na Dinamarca. Mas a Nigéria hoje vive como os dinamarqueses em 1850. O que se pode pedir a eles que reduzam?

P. Os países que precisam crescer podem ser advertidos sobre o perigo de crescer muito?

R. É como falar de câncer de pele a quem tem falta de iodo. Estamos numa economia global, mas não existe uma solução global igual para todos. O mundo ocidental esquece isso. O custo de reduzir as emissões não deve ser proporcional, e sim sob medida. Não é o mesmo crescer para sobreviver que para expandir a economia. Vejamos a Índia. Está prestes a ultrapassar a China como o país mais populoso do mundo [a ONU prevê que ocorrerá em 2027], entretanto consome um terço menos de energia.

Vaclav Smil vive no Canadá e foi professor de meio ambiente.TIM SMITH (CONTACTO)

P. A expansão da humanidade está chegando a seu fim?

R. Há quem não entenda que o crescimento perpétuo não existe. Vivemos em um planeta finito. Quase todos os países europeus já deixaram de crescer. Se não fosse pela imigração, legal e ilegal, a Europa não teria população suficiente para pagar as pensões.

P. Se a imigração for uma solução, por que é uma medida pouco popular?

R. Se a vida fosse parecida em ambos os lados do muro entre o México e os Estados Unidos, as pessoas não se deslocariam. A migração é o resultado da desigualdade: os pobres se mudam para países ricos para sobreviver. Faz parte da nossa natureza procurar comida para nossos filhos e fugir dos conflitos ou da opressão. Não quer imigração? Defenda a equidade. Pouquíssimos países se fecham como a Hungria. Entretanto, a época de portas abertas passou. Obama percebeu. Deve regular-se que o mundo seja um lugar mais equitativo.

P. O senhor chegou há 50 anos da Tchecoslováquia ao Canadá. Por quê?

R. Quem quer viver numa jaula comunista?

P. Explicando como mudou a sua maneira de se aquecer, o senhor percorre a história da energia.

R. Sim. Meu pai cortava troncos de abeto, e esse sistema tinha escassos 15% de eficácia. Nos Estados Unidos vivemos em um apartamento onde a calefação funcionava a óleo diesel – com 67% de eficácia. Passei meia vida no Canadá com gás natural. Nossa casa tem 97% de eficiência energética.

P. Como a conseguiu?

P. Isolando as paredes e com vidros triplos. Na Espanha, quase todas as janelas têm um único vidro. Nos países frios, costumam ter o dobro. Eu os deixo triplos.

P. Falando de energia, o senhor parece um psicólogo: “Se não controlar o declínio, sucumbe a ele”.

R. Claro. Saber lutar com a decadência é desejável. Mas nem todo mundo acha assim. Vejamos: a retirada do Afeganistão foi julgada na Europa como o declínio dos Estados Unidos. Mas é assim? Foi uma decisão livre: os Estados Unidos escolheram se retirar.

P. Frente à liberdade de se retirar está o egoísmo de ignorar.

R. Todo mundo sabe que os Estados Unidos cometeram erros, e entretanto continuam sendo a economia mais dinâmica do mundo. A China pode ser maior, mas há 1,412 bilhão de chineses, e apenas 331 milhões de norte-americanos. A renda per capita nos Estados Unidos é muito superior. Fala-se do declínio norte-americano e do apogeu chinês sem conhecimento. Sempre pergunto que posição a China ocupa no índice do PIB [per capita]. Você sabe?

R. Sei pelo seu livro: 82ª posição.

R. Não se pode medir a economia à margem da população. O dinamismo é fundamental para mantê-la viva. Sendo a típica europeia, você deve ter três celulares, certo?

P. Um.

R. Diga-me, onde foi inventado? Nos Estados Unidos. E os aviões modernos? A pesquisa e a criatividade antecedem à produção. Que os Estados Unidos se retirem do Afeganistão não quer dizer que estejam acabados. As pessoas gostam de simplificar.

P. O senhor demonstra com números que os Estados Unidos não são um país excepcional.

R. Claro. Ali é mais provável que os bebês morram. Se você busca evidência da excepcionalidade norte-americana, não a encontrará nos números, que é onde importa. A razão é que se é excepcional em algo, não em tudo.

P. Os Estados Unidos adotaram sua visionária Constituição: “Todos os homens são criados iguais”, enquanto o primeiro, o terceiro e o quarto presidentes eram proprietários de escravos.

P. Nos países islâmicos, a escravidão existia até ontem. Na Arábia Saudita, pode ser que inclusive agora. E há uma escravidão de fato: as pessoas trabalham trancadas em casas.

P. A democracia é uma utopia?

R. É imperfeita, mas me dê uma alternativa melhor. Vejamos: na Finlândia quase não há estrangeiros [7% da população]. O consenso social é mais fácil que nos Estados Unidos, com diversidade de raças e religiões. Vejamos na Espanha: todo mundo quer ser independente! País Basco, Catalunha, até Madri! É mais fácil governar a Finlândia. Os nórdicos deveriam ser excluídos das comparações internacionais. O mundo é um lugar que desmorona num dia e se arruma no dia seguinte.

P. Como lidar com a incerteza?

R. Nos anos oitenta escrevi um livro sobre o meio ambiente na China. Durante anos me perguntaram quando seria irrespirável. Sempre respondi o mesmo: não veremos isso. Está na condição humana dar um grande passo adiante e outro para trás. A poluição na China é uma das piores do mundo, mas o tratamento de águas melhorou. Quantas coisas melhoraram na Espanha desde a morte de Franco? Você me dirá que muitas, mas quantas pioraram?

P. Seu discurso de que o mundo se autorregula poderia ser utilizado pelos negacionistas da mudança climática.

R. Essa pergunta pertence ao passado. Nos últimos 50 anos deixamos para trás o descuido com o meio ambiente. Há leis, ministérios, sanções e educação.

P. Também há mais poluição.

R. Claro, mas a consciência existe. Inclusive nos países mais pobres. E gera resultados.

P. Quando pesquisa, como decide o que será importante e o que é irrelevante?

R. Pense no corpo humano: é mais importante um rim ou o fígado? É absurdo pensar que os problemas ambientais são mais importantes que os econômicos, porque tudo está relacionado, e só vamos solucioná-lo se entendermos isso. Aí as redes sociais são tóxicas: não entendem as conexões.

P. Usa o Google?

R. Quem não usa o Google? 90% do mercado é dele. Faz tempo que é uma ferramenta de mercado, e não tenho dúvidas: o Google tem o melhor algoritmo. Especialmente se você busca informação séria, e não idiotizantes vídeos do YouTube.

P. Quase todo mundo usa celular, e o senhor não. Por quê?

R. Não me interessam as estúpidas redes sociais. Por que teria que contar minha vida a gente que não conheço? Por que deveria fazer comentários sobre coisas que não sei? Olhe, quando a gente tem um problema no coração, precisa da opinião de um cardiologista. Não a de alguém sentado num quarto escuro.

P. Que os homens mais ricos do mundo subam em foguetes para explorar a biosfera é uma oportunidade para os humanos ou uma oportunidade de negócio?

R. Se as pessoas forem audazes, tudo é uma oportunidade de negócio. A pergunta é: a que preço e para quê.

P. O que é o progresso?

R. Ter a população infantil vacinada, nutrida, com uma expectativa de vida que passe dos 40 para os 80 anos e com educação e saúde garantidas pelo Estado. Aliás, a Espanha está no topo da expectativa de vida, com o Japão, apesar de hoje comer carne demais.

P. Quanto é carne demais?

R. Durante o franquismo comiam oito quilos por ano por pessoa. Agora, quase 200.

P. O senhor come carne?

R. Claro. Por que não comeria? Somos onívoros. Não temos o sistema digestivo dos herbívoros, como uma vaca ou um coala. A chave está no oni, que significa tudo. Implica variedade e não exceder-se em nada.

P. Surpreendeu-me saber que bebemos menos vinho que há um século.

R. O consumo baixou sobretudo no Mediterrâneo. Em seu país [a Espanha] se bebe mais cerveja que vinho. O mesmo quanto à dieta mediterrânea: eu cozinho com azeite de oliva, mas na Espanha o que mais se vende é o de girassol.

P. O senhor cozinha?

R. Todo dia. Para mim e para minha esposa.

P. Eu o imaginava submerso em suas leituras e com tempo para pouco mais.

R. Não aguentaria pesquisar se não tivesse uma vida organizada. Preparar o que se come mantém você saudável e desperto. Hoje comprei um bacalhau e vou fazer com batatas.

P. “O homem industrial não come batatas produzidas com energia solar, e sim batatas parcialmente produzidas com petróleo.” O senhor escreveu que sem a síntese de fertilizantes Haber-Bosch haveria fome generalizada.

R. Sem nitrogênio as plantas cresceriam menos e não haveria para todos. Os fertilizantes não servem só para aumentar fortunas; eles alimentam a população mundial.

P. Comer de forma saudável universalmente é uma tarefa impossível?

R. A saúde pública universal é tarefa impossível? É um desafio. É possível planejar melhor as safras e melhorar os fertilizantes. As vacas podem comer alfafa. Nós, não. Mas se só comemos vacas, temos que alimentá-las. Quase tudo no planeta é uma questão de equilíbrio.

P. O México continua sendo o país com mais sobrepeso?

R. Atualmente é a Arábia Saudita, com mais de 70% da população obesa.

P. Cerca de 12% da população está subnutrida. E 75% superalimentada. Por que o que é barato engorda tanto?

R. Porque tem gordura saturada e muito açúcar, que produz um efeito de saciedade com pouco gasto.

P. A epidemia de obesidade tem mais relação com a pobreza ou com os carros?

R. A resposta é multifatorial: a genética manda, a dieta ajuda, e o exercício ou a atividade compensam. A maioria das mulheres japonesas não faz exercícios. Mas elas são ativas.

P. Como o senhor se desloca por Winnipeg?

R. Aqui é muito difícil viver sem carro. O supermercado mais próximo está a cinco quilômetros.

P. A frugalidade é uma educação?

R. Voltamos ao mesmo: o que é pouco? Tem gente que acredita que três carros seja pouco, e há quem considere que um é muito. Além disso, a educação não é tudo. Tem gente educada e muito infeliz. Gente educada que comete crimes e desfalques financeiros. Gente educada se divorcia na mesma proporção que gente sem instrução. A alta educação só tem um resultado comprovável: maiores possibilidades de ganhar dinheiro. Mas nem esse dado é infalível, basta ver na quantidade de graduados que há na Espanha que se veem forçados a emigrar.

P. Diga-me se há pelo menos uma energia mais razoável.

R. Sim: o gás natural. Disponível em todo mundo, é a mais limpa das energias fósseis, que quando queimadas geram dióxido de carbono. Passará muito tempo até que possamos obter a eletricidade que necessitamos apenas de recursos sustentáveis como o vento e o sol. Enquanto isso, a mais eficaz é o gás. Não há discussão possível.

P. É um perigo que algumas energias – como o gás natural – estejam em poucas mãos?

R. Não. Durante muito tempo o mercado do gás permaneceu limitado porque não havia maneira fácil de transportá-lo. Mas uma vez construídos os gasodutos fica fácil. A Europa depende do gás do mar do Norte. E do russo. A Espanha importa do Qatar. Até o Canadá exporta para a Europa.

P. Com tanta informação, seus medos são globais ou pessoais?

R. O medo é pessoal. Por isso é quase impossível sentir o mesmo por uma criança que morre na África do que por um filho doente. Mas a informação nos recorda que o mundo é uma máquina complexa. Um risco termina onde outro começa. Pense na pandemia. O mundo é um lugar de risco.

ANATXU ZABALBEASCOA– El PAÍS SEMANAL


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