Serguei Shoigu, o ministro da Defesa, é um general sem carreira militar que está longe de desempenho estelar na invasão da Ucrânia
Rendição nada menos do que incondicional. Este é preço da paz apresentado ontem por Vladimir Putin através de seu porta-voz.
Os quatro pontos: fim de toda ação militar; mudança constitucional para oficializar a neutralidade da Ucrânia (entrar na OTAN é um projeto inserido na constituição ucraniana); reconhecimento da Crimeia como território russo e reconhecimento da independência das regiões separatistas de Luhansk e Donetsk .
Está a Rússia de Putin em condições de fazer exigências que deixam a Ucrânia de joelhos?
Quem tem a resposta é Serguei Shoigu, ministro da Defesa considerado a coisa mais próxima que Putin tem de um amigo – as fotos dos dois sem camisa, pescando em regiões remotas durante o verão tornaram-se um dos ícones da masculinidade tóxica de Putin.
À frente da maior operação militar russa desde a II Guerra Mundial, Shoigu é, excepcionalmente, um comandante militar que nunca fez carreira nas forças armadas. Embora tenha a patente de general, sua formação é de engenheiro civil. Durante o período comunista, trabalhou com obras públicas. Com o fim da União Soviética, passou para a área de defesa civil, que transformou numa força militarizada. Chegou a governador da região de Moscou e foi nomeado por Putin para modernizar as forças armadas.
Além das pescarias e de atividades em contato com a natureza (e com a máquina de propaganda, claro), os dois compartilham o gosto por história e uma certa nostalgia: Shoigu mandou redesenhar as fardas do exército para ficarem mais parecidas com as usadas durante a II Guerra Mundial. Um toque vintage, digamos.
A mesma abordagem “clássica” está sendo vista na campanha da Ucrânia. O plano original de uma tomada rápida e relativamente incruenta do comando do país não funcionou e as tropas russas voltaram para o manual: avançar pelas bordas em direção ao centro, com uso maciço de artilharia contra alvos estratégicos e também prédios de uso civil. A ideia é vencer pelo terror uma população indefesa, que naturalmente procura refúgio em outras áreas, e arrancar o recuo ou rendição da resistência armada.
A superioridade bélica dos invasores compensa, assim, a relação clássica de combate urbano: para cada defensor, que tem a vantagem de conhecer todas as características do terreno, são necessários quatro atacantes.
Teria Shoigu prometido mais do que está conseguindo entregar? O Wall Street Journal publicou uma reportagem levantando a hipótese que está na mente de todos os observadores. O almirante Tony Radakin, que ocupa uma posição equivalente à de chefe do estado-maior das forças armadas britânicas, fez para a BBC uma análise bem negativa da campanha russa.
Segundo ele, não é inevitável a vitória militar que parece tão previsível. “Estamos vendo uma invasão russa que não está indo bem”, analisou.
“A Rússia está sofrendo, a Rússia é uma potência isolada. É menos poderosa do que há dez dias. Alguns elementos avançados das forças russas foram dizimados pela resposta ucraniana”.
Esta avaliação pode ter um componente de expressão de desejos ou pode refletir dados apenas parciais da realidade que não alteram o essencial: uma vitória militar russa, mesmo ao preço incomensurável em vidas inocentes e destruição material.
Qualquer coisa menos do que isso seria um considerado um fracasso capaz de destruir qualquer carreira.
A seu favor, Shoigu tem a campanha da Crimeia, a península ucraniana tomada em 2014 em um único fim de semana, por forças especiais russas, e a quase inacreditável virada na Síria que garantiu, contra todos os prognósticos, a sobrevivência do regime de Bashar Assad.
Mas todo mundo sabe que os méritos em campo de batalha vão para o chefe supremo – Putin, claro – e os deméritos para toda a cadeia de comando abaixo disso.
Shoigu está tão entranhado na cúpula do poder que chegou a ser cogitado como um eventual sucessor caso Putin saísse de cena por motivo de saúde.
É uma especulação que não leva em conta que russos dificilmente aceitariam um não-eslavo no poder supremo. Shoigu é filho de mãe russa, nascida na Ucrânia, e de pai da etnia tuvan, um povo do coração da Ásia Central, daí seus traços asiáticos.
O passado stalinista da Rússia está cheio de cadáveres de militares de alta patente expurgados – e fuzilados – exatamente no momento de maior vulnerabilidade, quando o Exército Vermelho enfrentava a invasão da Alemanha nazista. Num único dia, dezessete generais foram executados nos porões da Lubianka.
Historiadores discutem até hoje por que Hitler tomou a decisão fatídica de invadir a União Soviética – e com tanta certeza de uma vitória rápida e garantida que as tropas alemãs avançaram sem linhas de abastecimento.
Qualquer general russo – real ou honorário – carrega na estrela do ombro o peso adicional dessa história avassaladora, tanto pela destruição interna provocada pelos expurgos de Stálin quanto pela resistência quase impossível a um vitorioso exército alemão que levava 3,5 milhões de homens a seu comando.
Shoigu obviamente tem consciência disso. Mas teria coragem de dar más notícias a Putin?
Ben Wallace, um simples capitão da reserva que é secretário da Defesa do Reino Unido, foi a Moscou antes da invasão da Ucrânia para alertar Shoigu que “os ucranianos iriam resistir e nós iríamos sancionar vocês”.
Saiu com a impressão, segundo disse ao Telegraph, de que o ministro da Defesa é um homem “muito profissional e direto”. Exceto pelo fato de que garantiu que os russos não iriam invadir a Ucrânia.
Wallace coloca a mentira deslavada na conta de uma prática chamada de “vyrano” em russo: “É quando eu minto para você, você sabe que eu estou mentindo e eu sei que você sabe que estou mentindo, mas minto mesmo assim. É uma forma de exercício de poder”.
Tem alguém que está mentindo a alguém na guerra na Ucrânia?
MUNDIALISTA Por Vilma Gryzinski