Em São Gonçalo, onde ocorreram nove mortes no Salgueiro, foram 232 registros entre julho de 2020 e setembro de 2021. Supremo volta a julgar nesta quinta-feira a ADPF 635, que teve trâmite paralisado após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
Desde que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu liminarmente pela restrição das operações policiais no Rio de Janeiro, em junho de 2020, o RJ registrou 1.563 mortes causadas por intervenção de agentes do estado. A média é de 3,4 mortes por dia, segundo levantamento feito pelo g1 com números do Instituto de Segurança Pública do Rio (ISP).
Os dados do número de óbitos foram obtidos em uma consulta das estatísticas de segurança disponíveis no site da instituição.
O STF volta a julgar nesta quinta-feira (25) a ação que trata da letalidade policial no RJ — a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 ou a ADPF das Favelas, como é conhecida. O julgamento foi paralisado no fim de maio, após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
A decisão liminar de Fachin proibiu a realização de operações policiais em comunidades fluminenses sem aviso e justificativa prévia durante a pandemia. As ações podem acontecer em hipóteses excepcionais, que devem ser justificadas por escrito pela autoridade competente e comunicadas em até 24 horas ao Ministério Público do Rio de Janeiro — responsável pelo controle externo da atividade policial.
Desde que a ADPF 635 entrou em vigência, em 5 de junho de 2020, 59 chacinas deixaram 250 mortos durante ações e operações policiais na Região Metropolitana do Rio, segundo dados da plataforma Fogo Cruzado.
Na classificação realizada a partir das notificações recebidas pelo sistema, chacina é quando acontecem três ou mais mortes na mesma ocorrência.
No entanto, números da plataforma demonstram queda significativa nos indicadores de violência armada desde que a medida passou a valer.
No período de um ano e cinco meses, houve 1.693 tiroteios em ações e operações policiais na Região Metropolitana do Rio. O número representa uma queda de 38% em comparação ao período de um ano e cinco meses anterior à ADPF, quando houve 2.715 registros.
O Fogo Cruzado também indica que, desde o início da vigência das restrições, houve queda de 35% no número de mortos (769) e de 33% no de feridos (912) em tiroteios decorrentes de ações e operações policiais, em comparação ao período de um ano e cinco meses anterior à ADPF, quando 1.178 morreram e 1.353 ficaram feridos.
Para Pablo Nunes, doutor em Ciência Política e coordenador da Rede de Observatórios da Segurança, “não há sucesso na construção de uma política pública cidadã e justa para todos onde a polícia faz operações com letalidade tão alta”.
“E vemos que não só os comandos da polícias, mas também os governantes parabenizam essas ações que acabam em massacres. Queremos uma polícia que garanta vida, que se paute pela inteligência, que faça ações que reduzam e minimizem as vítimas”, diz ele.
E acrescenta:
“Esperamos que, com o retorno do julgamento, o STF se posicione pela ilegalidade de operações policiais violentas que causam mortes e que não colaboram para a melhoria da segurança pública no Rio e muito menos da sensação de segurança da população das áreas que recebem as ações”.
Organizações sociais
Na ADPF 635, 11 organizações sociais participam como “amicus curiae”, fornecendo subsídios ao processo. Para Fransérgio Goulart, coordenador da Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial (IDMJR), que faz parte desse grupo, “o Estado rapidamente ressignificou o conceito de excepcionalidade e agiu como se tudo fosse excepcional“.
“Nos primeiros meses, a liminar foi fundamental para diminuir a letalidade das ações. Mas, a partir do quarto, quinto mês, o Estado mudou o conceito de excepcionalidade e, depois disso, qualquer ação era excepcional. Tirar barricada, operação para pegar quantidade ínfima de drogas, sem nenhum tipo de trabalho de inteligência”, diz ele.
Em relação à ação da polícia no Complexo do Salgueiro no último fim de semana, Daniela Fichino, advogada e coordenadora da Justiça Global – que também se articula na ADPF 635 – afirma que a justificativa da operação pela morte de um agente não se enquadra nas normas da lei.
“Não podemos aceitar que uma operação seja feita como forma de retaliação, isso é totalmente incompatível com o Estado Democrático de Direito. Um estudo do Fogo Cruzado em conjunto com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF mostrou ainda que as principais justificativas da polícia para fazer operações são relacionadas ao impedimento de bailes funk, outros eventos e retirada de barricas, o que não é excepcional”, diz Daniela.
A Defensoria Pública do Estado do Rio aponta que, de 2013 a 2019, a Região Metropolitana do Rio viveu um aumento de 313% das mortes por intervenção de agente de Estado. Ainda de acordo com a defensoria, essa tendência foi revertida somente em 2020, com a restrição das operações policiais pelo STF, resultando na maior redução da letalidade policial dos últimos 15 anos (34%).
Óbitos por área de atuação da polícia
A área com maior número de mortes registradas por intervenção de agentes do Estado é a área do 7º BPM (São Gonçalo), com 232 registros entre julho de 2020 e setembro de 2021.
No domingo (21), oito corpos foram resgatados de um manguezal após uma operação da Polícia Militar na região do complexo do Salgueiro. Outro corpo foi achado em um hospital – a nona morte na ação policial. Um policial militar tinha sido morto um dia antes.
Depois de São Gonçalo, vem a área do 24º BPM (Queimados), com 122 registros. A região do 15º BPM (Duque de Caxias) vem logo atrás, com 119, a circunscrição do 41º BPM (Irajá) com 113 mortes e o 39º BPM (Belford Roxo) com 96 mortes.
Entre 2010 e 2020, foram registradas 10.087 mortes por intervenção de agente do Estado.